Pesquisa revela que 70% dos processos de crimes raciais são vencidos pelos réus. Especialistas comentam causas e consequências dessa estatística
Cotas e Estatuto da Igualdade Racial, Ministério e Secretarias especializadas. Mais e mais representantes negros e brasileiros declarandose negros ou pardos nos censos populacionais - a autoestima melhora a cada política pública favorável à comunidade negra; a sensação é de que há, no mínimo, um desejo geral de reparação pelo passado escravista. Contudo e em um grande paradoxo, os casos de preconceito continuam sendo alardeados pela mídia brasileira. O Observatório da Discriminação Racial da cidade de Salvador (BA) registrou, somente durante o último carnaval, pelo menos 204 ocorrências. Enquanto um Estado de população majoritariamente negra enfrenta esse tipo de situação, um deputado de outro Estado, vanguardista na discussão política de questões raciais, Jair Bolsonaro (PP-RJ), diz ser "promiscuidade" a possibilidade de relacionamento entre um branco e uma negra.
Qual será o destino desses eventos no cenário jurídico brasileiro? Serão realmente levados adiante ou abandonados no meio do caminho? Quem ganhará os processos?
Um estudo de abril deste ano, feito pelo Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisou julgamentos em segunda instância de crimes de racismo e injúria racial nos tribunais de todo os estados brasileiros, entre 2007 e 2008.
CONSTATOU QUE 70% DAS 148 AÇÕES IMPETRADAS NA ÉPOCA ACABARAM SENDO VENCIDAS PELOS RÉUS
Constatou que 70% das 148 ações impetradas na época acabaram sendo vencidas pelos réus. Em comparação com 2005 e 2006, aumentaram os processos julgados (eram 87, apenas), mas aumentou, também, o número de casos em que o criminoso leva a melhor (nesse biênio, 52,4% dos réus venceram os julgamentos). Uma matéria ampla na revista IstoÉ divulgou a pesquisa, alertando, na fala de pesquisadores do Laeser, para o despreparo dos profissionais do judiciário com a temática e o conservadorismo que atrapalha e desqualifica o discurso das vítimas. Mas o fato é que essa impunidade se reflete na forma como o denunciante (vítima) se comporta e é atendido nas delegacias. Influencia, ainda, pelas jurisprudências criadas, a condução em geral dos processos. Este ciclo vicioso na esfera jurídica pode ter causas que vão além de qualquer conservadorismo e têm amparo na lei e na antiga questão da desigualdade social, segundo especialistas ouvidos pela RAÇA BRASIL.
QUEDA DE BRAÇO
De que adiantariam juízes e varas democráticas se "há uma enorme dificuldade de provar o crime racial, as pessoas não querem testemunhar", constata Eduardo Pereira da Silva, presidente da Comissão da Igualdade Racial da OAB/SP. Mas ele nota, na verdade, que esse receio existe porque essas ocorrências seriam, em maioria, embates entre classes mais abastadas e pessoas de menor poder aquisitivo, para além da burocracia que há e do tempo que se demanda das testemunhas. Haveria um senso comum responsável pela sensação de que, no Brasil, os "ricos" sempre ganham essa "queda de braços", e que tudo se reverte negativamente para a população menos favorecida, explica o presidente da Comissão paulista.
No âmbito legal, a dificuldade estaria no fato de que o crime de racismo ainda tem suas particularidades, à medida que o texto da Lei qualifica o ato em variações importantes: de um lado o racismo propriamente dito, inafiançável e imprescritível, segundo a Constituição de 1988, e, do outro, a injúria racial. Baseada na legislação, a doutrina penal considera "injúria racial" a ofensa de conteúdo discriminatório proferida contra uma pessoa em particular. Já o crime de racismo é considerado a ofensa geral à determinada raça, cor, etnia, religião ou origem, agredindo um número indeterminado de pessoas. No primeiro caso, prevê-se pena de reclusão de um a três anos e multa ou o chamado serviço social para o réu. No segundo, não há fiança, a pena é de um a cinco anos de reclusão, dependendo do entendimento penal. A diferença no enquadramento apoia-se em questões "semânticas" e linguísticas envolvidas na ofensa. O que pressupõe que não há limites para sua interpretação subjetiva. "O trabalho do advogado é lutar para que o entendimento do conteúdo da denúncia seja correto, para um julgamento proporcional ao dano causado", diz Silva, da OAB/SP.
CRIMES RACIAIS NA INTERNET Nem na rede mundial de computadores o quadro é mais ameno, de acordo com a SaferNet, órgão que reúne estatísticas sobre denúncias de intolerância e discriminação cometidas pela Web, além de crimes de pornografia infantil, tráfico de pessoas e apologia de crimes contra a vida. A entidade registrou aumento nas ocorrências de racismo durante o último mês de maio, em relação ao mesmo período do ano passado. De 130 casos o número pulou para 407, mais de três vezes o número de ocorrências em um ano. São queixas feitas à Central de Denúncias de Crimes Cibernéticos, das quais 99% são anônimas e vêm de toda a América Latina e Caribe (2.500 registros diários, para vários tipos de delitos no cyberspaço). Pela Central é possível, ao denunciante, acompanhar o andamento das denúncias, que são encaminhadas as sinstituições competentes. |
ONDE DENUNCIAR:
Qualquer delegacia de Polícia Civil de qualquer Estado ou, em São Paulo, em instituições especializadas: Defensoria Pública do Estado de São Paulo Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos Avenida Liberdade, nº 32, 7º andar, sala 3, com atendimento de segunda à sexta feira, das 9h às 17 horas (próximo ao Metrô Sé)nucleo.ndhc@defensoria.sp.gov.br Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI) Rua Brigadeiro Tobias, 527 - 3º andar Luz - SP (11) 3311-3556/3315-0151 ramal 248
TEM CERTEZA DE QUE FOI COM ESTA CONOTAÇÃO?
Depois da Constituição de 1988 veio a mudança do Código Penal, em 2009. A modificação tornou desnecessária a presença de um advogado para representar as queixas, após ser lavrado um boletim de ocorrência. Feita a denúncia, o Ministério Público entra no jogo e nem é mais necessária tal representação. Mas, ainda assim, essa fase da abertura do inquérito continuaria sendo um determinante para que se avance na questão dos crimes raciais. As informações fornecidas na delegacia - acredita Silva - podem fazer toda a diferença, à medida que alguns procedimentos fazem com que os delitos sejam nem sequer denunciados. "Muitas vezes há a orientação do tipo 'olha, tem certeza de que foi com essa conotação?', 'o processo é longo, a parte pode receber apenas uma punição com serviços sociais', entre outros conteúdos", explica. É quando a vítima acaba sendo induzida à sensação de que o réu não será punido adequadamente e não leva a denúncia adiante. Para evitar esta abordagem, o presidente da Comissão da Igualdade Racial da OAB preconiza que as denúncias sejam feitas em delegacias especializadas, se houver alguma na região.
O advogado carioca Luiz Fernando Martins da Silva, associado, ex-diretor e assessor jurídico do Instituto de Pesquisa e Culturas Negras, crê que as desistências das denúncias e processos têm reduzido, embora não haja levantamento oficial amplo a respeito. Sua percepção é baseada no contato com organizações especializadas na área. "A pressão exercida pelas entidades do Movimento Negro sobre as autoridades e a sociedade em geral tem feito esse quadro melhorar, principalmente nas grandes cidades.
O Movimento tem pressionado as Secretarias de Segurança Pública a criarem delegacias especiais objetivando a superação, dentre outras, dessa dificuldade.", diz, também recomendando que a denúncia de supostos crimes raciais seja feita em (ou por meio de) instituições específicas. "Eu creio, a cada dia, que os negros estão conhecendo mais os seus direitos", afirma o advogado, certo de que a orientação, nesse sentido, é essencial para mudar leis e estatísticas. Para Luiz Fernando Silva, a questão do preconceito é mais descarada e assim deveria ser o entendimento penal a respeito, sendo racismo todo e qualquer conteúdo racista. "Vale dizer que a Convenção Internacional da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1966, em seu artigo 1º, conceitua discriminação como sendo qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de Direitos Humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural, ou em qualquer outro domínio da vida pública". Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil em 1968.
VITÓRIA DO CENTRO
O Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate ao Racismo da Secretaria de Participação e Parceria (SMPP) de São Paulo, comemorou recentemente uma vitória na luta contra o racismo. Venceu seu primeiro caso de crime racial, referente ao processo nº392/10 da 26ª Vara Criminal Central da Comarca de São Paulo. A ação foi movida pela conselheira tutelar Djanira Aparecida Teixeira dos Santos, de 48 anos, contra um colega conselheiro. A apuração da 26ª Vara Criminal Central levou o réu primário à condenação a um ano de reclusão e dez dias de multa. A pena pecuniária (multa) de R$510,00 por dia será depositada em favor do Hospital do Câncer.
O Centro - gerido pela Coordenadoria dos Assuntos da População Negra (CONE) - foi criado há dois anos e está localizado no Páteo do Colégio, no Centro de São Paulo.
O principal objetivo do Centro de Referência é receber, encaminhar e acompanhar toda e qualquer denúncia de discriminação racial e/ou violência que tenha por fundamento a intolerância racial. Além de garantir apoio psicológico, social, pedagógico e jurídico aos casos registrados.
Fonte: Raça Brasil
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