terça-feira, 8 de outubro de 2013

Racismo no PPGA (Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará)

A carta abaixo foi enviada para a Coordenação do PPGA e para outras pessoas e instituições, da Universidade Federal do Pará e de outros órgãos, por uma professora na universidade.

A carta abaixo foi enviada para a Coordenação do PPGA e para outras pessoas e instituições, da Universidade Federal do Pará e de outros órgãos (discriminados no parágrafo final), por uma professora na universidade. Seu nome é Cristina Maria Areda Oshai, e ela escreve, porém, na qualidade de aluna do Doutorado em Antropologia da UFPA. A carta, datada de 24 de Setembro de 2013, é ao mesmo tempo uma denúncia revoltante e uma exigência em termos de reflexão e de ação. Como não sei se a forma como ela me chegou às mãos poderia causar problema a quem a enviou, prefiro omitir essa informação. Aí vai o texto. (Tania Pacheco)

Senhora Coordenadora,

Sou docente desta UFPA e, desde abril/2013 estou licenciada para cursar o doutorado nesse Programa, onde tenho me realizado academicamente. No dia 03/09/2013 eu e outros alunos, matriculados na disciplina Teoria Antropológica Contemporânea, estávamos na sala de aula nº. 01 do PPGA, quando o Prof. Dr. Fabiano Gontijo, responsável por ministrar a disciplina, nos levava a refletir sobre estereótipos e, a exemplo, relatou que ouvira de alguém próximo à sua residência que “dois pretos em Belém e de bicicleta são ladrões.” Em seguida condenou a naturalização dos estereótipos e problematizou sobre o uso e legitimação desta e de outras expressões preconceituosas e racistas, principalmente se for feito por antropólogos e alunos.

Ao longo de sua exposição o Prof. Dr. Fabiano foi interrompido por uma aluna, Elizabete Pereira Pires que, até então eu não conhecia. Essa aluna, com uma naturalidade de alguém que, se sentindo totalmente à vontade no ambiente e acima de tudo sem considerar o outro como sujeito, disse em alto e bom tom que era isso mesmo; que os ladrões em Belém são assim mesmo; que ela foi assaltada na porta de sua casa e o cara que pôs uma arma em sua cabeça era preto e que o conselho que ela dava ao professor (que é recém-chegado em Belém) e a todos nós, até porque ela fazia isso era, “se vê dois pretos, corre porque é ladrão.

Eu sou negra, tenho pele preta, com imenso orgulho. Afinal os meus ancestrais é que foram surrupiados por determinados povos europeus, que por terem sido absolutamente incapazes de garantirem sua sustentabilidade dignamente precisaram piratear, saquear e traficar coisas e pessoas por eles coisificadas. Os que afirmam ou que concordam que “todo preto é ladrão” querem na verdade inverter uma lógica que predominou por mais de trezentos anos neste pais, denominado pelos usurpadores de “Brasil”. Trata-se de um esforço infrutífero para apagar e limpar historias que já foram escritas nos livros e nas memórias coletivas, com tintas, sangue e a ferro e fogo, literalmente. O passado jamais poderá ser apagado, embora qualquer história possa ser recontada. E, já que a verdade parece ser um dos pressupostos da Ciência e que no espaço acadêmico há muitos que se dizem cientistas, o verdadeiro seria dizer que determinados povos europeus não negros e não indígenas invadiram terras, roubaram, saquearam e assassinaram por mais de 300 anos; que muitos ficaram ilesos apesar de todos os crimes praticados e ainda puderam deixar a herdeiros e herdeiras bens materiais e imateriais como o prestigio, dos quais muitos se valem até hoje e esperneiam para não perder, porque, a exemplo de seus ancestrais, são incapazes. Nessa lógica, espaços e cargos públicos continuam sendo preenchidos pelo critério da cor da pele (que não deve ser preta) e do prestígio deixados por ladrões, escravocratas e traficantes. Reconheço que há exceções. Sou preta e descendo de pretos africanos e apesar de todas as atrocidades cometidas contra nossos antepassados (estupros, saques, torturas, apropriação de saberes, dentre outras), estamos aqui e representamos hoje 52% da população brasileira e 72% da população paraense (se somados pretos e pardos).

Após ter explanado seu pensamento a aluna Elizabete Pereira Pires continuou participando da aula tranquilamente e emitindo suas opiniões. Foi quando constatei que ela continuou desconsiderando que eu negra, preta e que estava diante dela. Obviamente já passei por inúmeras situações de discriminação e racismo, mas nunca tinha visto nada igual. Fiquei em estado de choque. Fui pega de surpresa. Passado o choque, mas não a indignação, a humilhação e até a vergonha de ter uma colega no doutorado proferindo frases racistas descaradamente, perguntei o nome da referida aluna (foi quando soube o nome dela) e disse que sou negra, preta, tenho filhos pretos, porém não somos ladrões. A aluna Elizabete Pereira Pires se desculpou dizendo que era professora de biologia em uma escola pública e que, infelizmente, era aquilo mesmo. Ela tinha muitos alunos pretos que, embora bastante aconselhados por ela, não queriam largar a vida do crime (…).

Preciso dizer que jamais imaginei ouvi algo assim e dito com tanta naturalidade em uma sala de aula de uma pós-graduação, dito por uma aluna de doutorado, em uma universidade pública e, acima de tudo em um curso de Antropologia. Imediatamente me lembrei de um ocorrido recentemente na Universidade Estadual do Pará – UEPA, quando uma antropóloga (por coincidência, ou quem sabe nem tanto) chamou um trabalhador negro de macaco. Penso que se fatos como esses continuarem sendo naturalizados em nossas universidades, não tardará serem os antropólogos os “objetos de estudo”, o que me parece já ser interessante para acontecer. Haveria algum determinismo nisso? Talvez Lamarck, Lineu, ou Darwin possam nos ajudar a compreender.

No dia 13/09/2013 procurei o Prof. Dr. Hilton Pereira da Silva (meu orientador e da outra aluna) para relatar o que havia acontecido. Embora ele já soubesse por terceiros, pediu que eu repetisse. Após me ouvir esse professor demonstrou surpresa e disse não compreender minha indignação, pois não via nada de errado no que a aluna havia falado. Para ele, Elizabete Pereira Pires apenas fez uso de sua liberdade de expressão e afirmou que ele era terminantemente contra o cerceamento da liberdade de expressão, chegando a me perguntar se eu queria instalar uma polícia ideológica no PPGA e que não via necessidades para tanto barulho, pois esse tipo de assunto deveria ficar em sala de aula. Refleti com o professor que, a meu ver, há uma diferença abissal entre liberdade de expressão e liberdade para opressão, para o constrangimento, desrespeito e racismo. Conversamos por um determinado tempo, suficiente para que o professor apresentasse seus argumentos teóricos sobre tolerância a colegas e direito à liberdade de expressão; sobre a necessidade de fazer valer nosso discurso de humanização e aceitar a opinião das pessoas, quaisquer que sejam; e sobre a necessidade de compreendermos que a universidade não é lugar para militância. Manifesto minha admiração pela elevada capacidade crítica do Prof. Dr. Hilton, cujos argumentos apresentados são dignos de um doutor em Bioantropologia e, pelo jeito, dignos de alguém a altura de ser o porta voz oficial da UFPA no trato dos assuntos relacionados ao Brasil e aos 53 países do continente africano, já que foi empossado recentemente na Coordenação da Casa Brasil África.

Desejo, sinceramente que ele tenha sorte e seja guiado pela força da ancestralidade negra. Afinal, combater o racismo em um país que se tornou nação pela força de corpos de pretos e pretas e de indígenas, subjugados com base no racismo é para quem tem coragem e não barganha suas convicções. Até porque, é por causa do racismo pessoal e institucional que espaços, como os universitários, continuam ocupados e sob domínio de uma minoria, à custa de uma imensa maioria que jamais terá a chance de cursar ensino superior e, menos ainda, uma pós-graduação; que continuará sendo tratada como objeto de estudo, sendo utilizada para ilustração de teses e dissertações, como pretextos para captação de recursos, e trunfos para carreiras profissionais meteóricas.

Embora eu tenha me apresentado no início desta correspondência como docente desta instituição, eu venho aqui na condição de aluna, ávida por conhecimento, solicitar que este PPGA (e demais grupos e coletivos que receberão uma copia desta correspondência) se manifestem com relação ao exposto, pois estou muito confusa. Quando acho que estou começando a aprender sobre Antropologia e sobre sociabilidades pautadas pela cidadania, vejo que estou entendendo tudo ao contrário… O que pensam sobre isso? Na opinião de vocês, dizer que todo preto é ladrão é apenas uma expressão de liberdade ou é crime de racismo? Esse tipo de expressão, falada por um discente do nível de doutorado, demonstra boa qualidade ou uma má qualidade do processo de formação profissional? O respeito à diversidade, que consta como primeiro princípio no regimento da UFPA, bem como sua missão institucional, faz algum sentido para nós? Se um/a jovem preto(a) nos perguntasse para que serve uma universidade ou para que um curso de pós-graduação ou, ainda, o que é ou para que serve a Antropologia, o que responderíamos? Não tenho a intenção aqui de por em xeque os argumentos do Prof. Dr. Hilton, mas preciso saber se há outras opiniões e possibilidades de interpretação dos fatos que aqui relatados, afinal os processos para construção de conhecimento são dinamizados tanto por respostas quanto por perguntas.

Pelo exposto sugiro que o PPGA realize um evento ampliado onde jovens pretos e pretas tenham voz. Um evento do qual participem representantes do movimento negro (Cedenpa, Malungu, Mocambo, Rede Mocambos, dentre outros) e de órgãos do Poder Público (Secretaria de Segurança Pública, Conselho de Segurança Pública, Defensoria Pública, Ministério Público, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, dentre outros) que vêm atuando a fim de reduzir o extermínio da juventude negra brasileira, motivado exatamente pelo estereótipo de que preto é ladrão – vejamos o Mapa da Violência contra a juventude brasileira publicado em 2012. Sugiro ainda que no acolhimento dos futuros alunos sejam apresentados os regimentos da UFPA e do PPGA, os artigos da Constituição Federal e do Código Penal referentes ao direito a diversidade e a criminalização do racismo, para que não venhamos a falar e fazer asneiras, principalmente se forem contrárias àqueles(as) que arcam com nossos empregos e nossos estudos. Considerando que esse PPGA adotou políticas afirmativas, a exemplo de poucos programas de pós-graduação instituídos nas universidades públicas brasileiras, sugiro que sejam realizados tantos eventos, quantos forem necessários com o intuito de “deseducar” as pessoas preconceituosas e racistas e educá-las para exercerem a tolerância e o respeito à diversidade. Com base na liberdade de expressão, exercerei meu direito para denunciar o racismo nas dependências do PPGA, fazendo isso por meio de cartazes educativos lembrando que racismo é crime, inclusive inafiançável.

Considerando que meus estudos são sobre saúde de populações negras quilombolas, que têm como um de seus elementos identitarios a resistência ao racismo e a outras formas de opressão, eu não poderia ser orientada por um professor que nega ou naturaliza práticas racistas ou as confunde com liberdade de expressão. Por isso, além de manifestar minha indignação e tristeza pelo ocorrido, manifesto também meu interesse em ser orientada por outro professor.

Fui indagada pelo Prof. Dr. Hilton sobre o que eu queria e esperava da Coordenação e do Colegiado do PPGA e da UFPA expondo o fato ocorrido na sala de aula. Respondi que apostava na reflexão e capacidade de aprendizado e também esperava que posturas racistas fossem coibidas, mas jamais o cerceamento da liberdade de expressão. Afinal, quem sou eu para fazer prescrições, ainda mais no mundo de brancos, e de brancos antropólogos… A única certeza que eu tenho é que os posicionamentos sobre o que expus aqui serão diretamente proporcionais à decência de cada um(a), ao compromisso e à responsabilidade que se tem, ou não, no trato da coisa pública, dos interesses coletivos e para a construção da cidadania.

Peço desculpas pelo tamanho da correspondência. Não me levem a mal pela iniciativa, só estou fazendo uso da liberdade de expressão. Sou apenas uma aluna preta, querendo aprender um pouco mais sobre os mecanismos de funcionamento desse mundo acadêmico tido por muitos como “civilizado”, no qual alguns acreditam que estão produzindo Ciência.

Serão enviadas cópias também para os Profs. Drs. Fabiano Gontijo e Hilton Pereira da Silva (por e-mail), para a Casa Brasil África, Grupo de Estudos Afro-Amazônicos, Representações discentes do PPGA (por e-mail) e para a Assessoria de Diversidade Étnico-racial da UFPA.

Cristina Maria Areda Oshai

Discente do PPGA – Matr. 201325080001

Fonte: CEDENPA

Indicado por Ana Paula Corrêa

3 comentários:

Marcos Aganju Oju disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcos Aganju Oju disse...

Evidente que foi um ato racista, duvido que ela falaria tal arbitrariedade na minha cara, ou na casa e presença de muitos negros! A questao é que ela tem direto de falar isso sim, mas tem que saber que ela esta sendo (apesar da liberdade de expressao), racista! Ponto final! Os racistas podem e devem se manifestar, mas tem que estar preparados para as consequencias das mesmas, assim como devemos nos manifestar contra. Munidos de argumentos!

Marcos Aganju Oju disse...

Digo que os racistas podem e devem se manifestar, pq acho melhor lutar quando se sabe contra o que e quem estamos lutando. Acho o racismo velado que temos aqui no Brasil mais nocivo para o desenvolvimento de todos do que esss pessoas que falam essas bobagens! Lamento como uma pessoa dessas chega em um Doutorado!

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