Heloisa Pires Lima (1)
Dois monstros sagrados, ícones da produção editorial voltada para o público infantil e juvenil, acabaram reunidos numa mesma polêmica acerca do racismo no Brasil. O poder inegável do que representam para a sociedade, parecia, até o momento, ter o reconhecimento das massas, do Estado ou da mídia de capital privado. Mas, se a sacralidade lhes atribuída já adquirira a condição de perene, vimos aparecer o lado monstruoso dessas moedas valiosas.
Ano de 2010. Em novembro, um manifesto pró Monteiro Lobato circulou em nome da falsa idéia de suas obras haverem sido proibidas pelo governo às vésperas de uma eleição. Longe disto, o parecer assinado pela conselheira Nilma Lino Gomes com o aval, por unanimidade, dos demais analistas do Conselho Nacional de Educação recomendava um conjunto de ações frente ao teor racista localizado na obra Caçadas de Pedrinho (original de1933). A partir da distribuição do título pela Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal um educador, mais atento, toma a iniciativa de protocolar à denúncia. A análise, de instância a instância acabou pauta para o CNE que chamou para si a responsabilidade de emitir o parecer com as sugestões. O critério considerou o objetivo de promover uma educação anti-racista que prevê a formação do educador para lidar com o assunto.
O viés eleitoral amplificou o caso com manchetes do tipo “querem proibir Lobato para as crianças”. Foram inúmeros adeptos da hora a multiplicar o arsenal de matérias em defesa do escritor. Os blogs reprodutores de artigos afiados no desejo de interpretar o momento impuseram o assunto. Os grandes jornais, revistas, programas radiofônicos, televisivos, enfim, tiveram à disposição uma pauta embasada em manifesto tornado celebridade. Somente a voz dos conselheiros demorou para ganhar o interesse da grande mídia. Até o ministro da educação, paradoxalmente, emitiu opinião informal antes de ouvir o próprio CNE. Mas em pouco tempo a espetacularização foi serenando, tornando cada mais insustentável a defesa do racismo em nome da bio-bibliografia de um autor. O debate amadureceu nos meios de comunicação com elementos inéditos para o grande público flexibilizando o juízo de valor anterior. E eis que, enquanto a posição definitiva e oficial do MEC estava ainda sendo aguardada para encerrar o caso aberto lá atrás, surge a ação protagonizada pelo cartunista Ziraldo. Numa tentativa de se adiantar ao ministro, o ponto final da polêmica, na concepção que ele adotou, foi desenhar um bem vestido Lobato agarrando uma mulata de poucas vestes para a estampa de um bloco de carnaval no Rio de Janeiro.
Não fosse a provocação do tema, a livre expressão do cartunista tinha tudo para reacender os melindres acerca da representação da mulher negra. Não fosse suficiente, a gracinha ficou mais animada com a voz na imagem, em off, do próprio Ziraldo, que afirma:
- Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com uma mulata. Ele tem um conto sobre uma neguinha que é uma maravilha. Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A idéia é acabar com essa brincadeira de achar que a gente é racista - revela o cartunista.
O pau do gato
O chiste é plausível na vida intelectual. A espirituosa capacidade de rir de si mesmo ou de realizar junções inesperadas, o duplo sentido, o trocadilho são jogos que a linguagem permite para sutilezas bem construídas. No entanto, não há nada mais desagradável do que uma piada sem graça. Maldita, então, é a jocosidade ofensiva. O humano é capaz de exacerbar fragilidades emocionais produzindo prazer para si e para o público para o qual exibe a própria esperteza. Somente a sensibilidade crítica inibe esse tipo de prazer. O dado de realidade localiza o impulso e tem força para a suspensão do conteúdo que agride. A percepção da dor do outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença é o princípio da alteridade, noção cara para os dias atuais.
Por isso a “gracinha” de Ziraldo soou como um tapa na cara, sobretudo, pela maneira displicente de referir o racismo que atinge a cidadania da população negra no país. O golpe veio acompanhado pela asneira conceitual que pressupõe racismo com ódio e sem ódio. Mas a excrescência teve troco. A densidade e o estilo conhecido das análises definitivas da ágil intelectual negra Ana Maria Gonçalves (2) foi a reação mais precisa. Outra, o isolamento do cartunista carente de eventuais defensores públicos da “carnavalização do racismo”.
O vínculo entre os escritores pode se tornar um marco para a atenção sobre o racismo quando sobreposto à sociedade brasileira. Todavia, a etiqueta racista entregue a um ou a outro esgotaria o evento nele mesmo. Certamente, Ziraldo não está sozinho na sua livre expressão. É comum os pleitos racistas invocarem a liberdade de expressão associada à condenável idéia de censura. Esta é uma das nuanças do deixe meu politicamente incorreto em paz, como se a criação artística não devesse satisfação nem ao constrangimento que possa submeter seja ao gato, ao urubu ou à infância negra. Se a razão do Estado é garantir a proteção e a defesa dos incluídos em seu território, a cidadania é livre para agir mas deve responder pelas conseqüências dos seus atos. Os aperfeiçoamentos legais conquistados arduamente são demandas que partem de argumentos culturais.
Portanto, não há como considerar irrelevante a violência difundida por meio de aparentemente ingênuas obras ou o mapa da violência 2011 que demonstra o extermínio de jovens negros. É evidente, o pensamento estampado na camiseta vinculado ao slogan- “não somos racistas”- na engraçadinha mensagem a circular no carnaval. Ele Ao não reconhecer a história particular da parcela negra da população do país atrasa intervenções para superar desigualdades que a atingem. E mantém privilégios.
E com a “mulata” impressa, Ziraldo consegue animalizar mais ainda a mulatisse das mulas que a semântica oferta às moças negras. Despida da história do uso semântico para racismos criadores de hierarquias entre mulheres reais, a do desenho está numa situação pior do que a do gato que segura numa das mãos o pau enquanto a outra lhe passa a mão na bunda.
O argumento implícito defende que não ser racista é sair ridicularizando uma pedagogia anti-racista. A indignidade sexista recupera ainda, a contenda da miscigenação, ora exaltada, ora condenada como síntese sociológica do Brasil. A máxima de sermos todos mestiços, concepção, aliás, soberana em princípios racialistas a priorizar o aspecto genético da questão, está aí dimensionada. Essa conotação social do feminino negro o transforma em categoria apaziguadora, de conflito racial. É a mesma lógica presente em teorias do relacionamento harmônico que tendem a evidenciar a felicidade do convívio inter-racial nas ruas e a silenciar no que diga respeito à segregação dos mesmos nas esferas de poder do país. A evidente desigualdade para acessos sociais e as iniciativas que afirmem a condição da diferença na escala dos fenótipos tem sido um importante desafio para a sociedade compreender, demandar e alterar padrões de poder no país. O principal entrave está nas visões que apenas consideram o fator classe para o desdobramento de políticas universalistas gestadas pelos governos. Para o Estado, a nuança da história da escravidão e suas conseqüências para os que dela descendem é uma variável particular na administração do bem comum.
O racismo nativo e o informante
Se os dois atores em questão podem ser vistos como dimensionamentos do racismo enrustido ou explícito, condenado ou negligenciado na sociedade dos nossos tempos, a inesperada reunião propicia uma circunstância singular; a de serem sujeitos nativos e informantes de conteúdos vinculados ao setor editorial.
Essa dicotomia é central para o saber antropológico, área que adotei como profissão. A problemática relação nativo-informante faz lembrar a busca de sistemática fundamentação a lançar luzes sobre o intercâmbio entre argumentos culturais e produção de conhecimento. A revisão incessante das teorias consideradas monólogos discursivos tiveram para exame as contingências imperialistas, colonialistas e tantas outras itas imbricadas nesse conhecer. Os inúmeros alertas confirmaram ao menos uma certeza: somente o acesso à produção garante o espaço para pontos de vista. O embate de idéias é a única e a mais louvável das lapidações em prol da democracia a gerar o saber compartilhado. E quando se trata de considerar a perspectiva infantil em seu movimento de ser informada pelo mundo e sobre o mundo? No caso brasileiro, podemos nos dar conta do imenso espaço que Lobato e Ziraldo ocupam na cabeça de várias gerações de brasileiros, o que ressalta o tema da presença negra na história editorial. As figurinhas negras elaboradas por suas mentalidades fazem parte do imaginário que produziram abundantemente quase como um monólogo promovido e consentido. A representação ofertada por esses autores quase não teve contraponto.
Mas ainda pensando em pólos opostos é hora de recordar o fato de sermos mais complexos que a teoria. Se a filiação ao partido político pode enviesar o julgamento de um relatório do MEC, o que dizer dos males da xenofobia? Reveladas as idéias racistas de Lobato, como o fez, recente e brilhantemente, Ana Maria Gonçalves examinando inclusive o acervo de cartas do escritor, a análise da produção do autor ganhou em redimensionamentos. Não há como negligenciar que para a história da presença de personagens negros no universo da literatura infantil os textos que ele produziu, foram inovadores, assim como o valor positivo para gênero, ou o protagonismo do idoso e outros aspectos que o exame atento pode, infinitamente, revelar. Caso o foco seja a ilustração de seu material, lá também está a Nastácia pelas mãos de Voltolino recebendo tratamento visual mais equitativo do que se poderia esperar quando relacionada à Benta.
O contrário também é exemplar. Uma leitura contemporânea das edições, ilustradores a fora e além da época original, reserva as mais grotescas formas da personagem. Idiotizada, bestializada, animalizada, inferiorizada sob todos os aspectos, tornando-a monstrenga, suja o que facilmente contrasta com a composição das demais figuras.
O dado, sem dúvida, tem muito a dizer a respeito da livre circulação de preconceitos para as gerações de diferentes contextos. Ziraldo, com seu trabalho O menino marrom (1986) produziu uma narrativa datada deixando por testemunho a dificuldade do cartunista em construir um personagem negro bonito. E ele cumpriu a tarefa reservando o cuidado gráfico ao personagem. O testemunho, dessa vez, é a dificuldade em desenhar um menino negro. Negro não; marrom. A estrutura da obra testemunha que nos anos 1980 ainda não havia meninos negros bonitos retratados nos livros. Também deixa dicas sobre a resposta da época em afirmar a identidade negra. A interlocução com o menino cor de rosa reduz a densidade da história pela da cor.
É um ângulo para lidar com a questão. É provável que tanto Lobato quanto Ziraldo precisaram localizá-la para traçar mapas, itinerários e rotas de viagem em terras desconhecidas como a de facultar seus modelos de humanidade negros. Da para imaginar os dois submetidos a uma série de circunstâncias políticas e de logística expedicionária durante o processo de suas criações. E, se muito se sabe das práticas coletivas de atribuir significados aos povos negros pelos não tão negros pouca é a investigação dos processos em que a paisagem humana negra vai surgindo no universo desconhecido do explorador. E é nessa brecha o destaque para a força dos personagens em sua soberania a propor conteúdos para a autoria. Na verdade, as Nastácias ou o Barnabés lobatianos são expressões da narrativa popular se impondo. O autor se serviu de saborosa fonte para as suas elaborações. O menino negro apesar da assimetria com o cor de rosa também conquistou sua visibilidade. E todo o escritor sabe que a construção do sentido literário nunca é unilateral. Ela indaga e negocia, o tempo todo, com a criação. O personagem, como espessura inconsciente, adquire vida, espaço e autonomia. Incluir a imagem da população negra por Lobato e Ziraldo é uma condição advinda do contato com o tema já que antes ele não havia. Apesar das concepções racistas, é a demanda por um protótipo negro que chama a atenção para si a ponto de entrar para o livro. E é esta soberania que torna notória ausência da imagem como nativos e/ou informantes para dar a conhecer o mundo.
O outro lado dessa mesma moeda é a presença de escritores negros no cenário das publicações. A existência negra expressa na literatura pouco abasteceu bibliotecas, videotecas, acervos de brinquedos. O racismo editorial recaiu com a mesma violência sobre potenciais autorias negras. Embora o personagem, mas também o autor negro seja como heróis da jornada contra o preconceito. A desigualdade fora é a mesma dentro das cenas ficcionais. Mas as mudanças não ficam esperando apenas a boa vontade do setor.
Em pleno século XXI, não fosse o educador bater na porta do MEC, os conteúdos do livro de Lobato, continuariam pouco problematizados. Da mesma forma o tabu de questionar seja quem for o autor consagrado nas bibliotecas escolares. Por sua vez, não estariam colocadas na mesa as indagações extensivas como o acesso à produção diversificador de pontos de vista. Não havendo confronto, a ignorância lúcida ou ingênua é mantida e não conseguirá identificar a dor do racismo. A “mulata” impressa na camiseta, no entanto, se olharmos bem, ela começa a falar da violência da assimetria que a posicionaram e que está ali sufocada e constrangida. A passividade simbolicamente sugerida, no entanto, acabou tridimensionalizada na realidade. A entrada da internet como variável para os principais polêmicas nacionais tornou o nativo informante e aponta a precariedade da dicotomia. Este é um ponto de virada.
O racismo, enfim, é um desafio para todas as sociedades e todas as esferas. O acervo para criança é extensão do livro acadêmico. A prevalência de fórmulas racistas em obras, aparentemente ingênuas, também expressa a falta de analistas formados para a temática. A tecnologia, consenso para aperfeiçoar o desenvolvimento do país deveria tornar mais apto o saber acerca do racismo. Assunto de impacto, a tecnologia das relações raciais ocupa qual o espaço no gerenciamento da ciência produzida no país? A gestão de financiamento da pesquisa em centros universitários necessita atentar para a diversidade e equanimidade que a acompanha. O investimento e a inovação tecnológica voltada para as dinâmicas raciais, no sentido político, é a estampa que o Brasil demanda ver passar nas suas avenidas.
(1) Antropóloga com mestrado e doutorado obtido na Universidade de São Paulo. Também escreve para crianças e é consultora para os episódios do Livros Animados- Programa A corda cultura- TV Futura.
(2) Carta Aberta ao Ziraldo, por Ana Maria Gonçalves
O outro lado dessa mesma moeda é a presença de escritores negros no cenário das publicações. A existência negra expressa na literatura pouco abasteceu bibliotecas, videotecas, acervos de brinquedos. O racismo editorial recaiu com a mesma violência sobre potenciais autorias negras. Embora o personagem, mas também o autor negro seja como heróis da jornada contra o preconceito. A desigualdade fora é a mesma dentro das cenas ficcionais. Mas as mudanças não ficam esperando apenas a boa vontade do setor.
Em pleno século XXI, não fosse o educador bater na porta do MEC, os conteúdos do livro de Lobato, continuariam pouco problematizados. Da mesma forma o tabu de questionar seja quem for o autor consagrado nas bibliotecas escolares. Por sua vez, não estariam colocadas na mesa as indagações extensivas como o acesso à produção diversificador de pontos de vista. Não havendo confronto, a ignorância lúcida ou ingênua é mantida e não conseguirá identificar a dor do racismo. A “mulata” impressa na camiseta, no entanto, se olharmos bem, ela começa a falar da violência da assimetria que a posicionaram e que está ali sufocada e constrangida. A passividade simbolicamente sugerida, no entanto, acabou tridimensionalizada na realidade. A entrada da internet como variável para os principais polêmicas nacionais tornou o nativo informante e aponta a precariedade da dicotomia. Este é um ponto de virada.
O racismo, enfim, é um desafio para todas as sociedades e todas as esferas. O acervo para criança é extensão do livro acadêmico. A prevalência de fórmulas racistas em obras, aparentemente ingênuas, também expressa a falta de analistas formados para a temática. A tecnologia, consenso para aperfeiçoar o desenvolvimento do país deveria tornar mais apto o saber acerca do racismo. Assunto de impacto, a tecnologia das relações raciais ocupa qual o espaço no gerenciamento da ciência produzida no país? A gestão de financiamento da pesquisa em centros universitários necessita atentar para a diversidade e equanimidade que a acompanha. O investimento e a inovação tecnológica voltada para as dinâmicas raciais, no sentido político, é a estampa que o Brasil demanda ver passar nas suas avenidas.
(1) Antropóloga com mestrado e doutorado obtido na Universidade de São Paulo. Também escreve para crianças e é consultora para os episódios do Livros Animados- Programa A corda cultura- TV Futura.
(2) Carta Aberta ao Ziraldo, por Ana Maria Gonçalves
Fonte: Memorial Lélia Gonzalez
0 comentários:
Postar um comentário