terça-feira, 18 de outubro de 2011

Impasse sobre quilombo no litoral norte gaúcho está em Brasília

A delimitação de terras quilombolas em Morro Alto, no litoral norte gaúcho, deixou de ser uma questão regional. A área é considerada uma das mais delicadas em todo o Brasil, porque há grande número de quilombolas que a reivindicam, mas também um grande número de pequenos agricultores não-quilombolas vivendo por lá. A superintendência do INCRA no Estado agora “está de mãos amarradas”, aguardando determinações de Brasília.

Até a Casa Civil do governo federal entrou no impasse, coordenando conversas entre os vários órgãos federais envolvidos, como Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Fundação Cultural Palmares e Secretaria Geral da Presidência da República. Uma reunião entre estes órgãos estava marcada para a última quinta-feira (13), mas a superintendência do INCRA no RS não recebeu qualquer determinação depois disto.

Enquanto o governo federal não toma uma decisão, o processo de concessão da área à comunidade quilombola está parado. Ele teve início em 2004, com os quilombolas reconhecendo-se como tal e requerendo a área que consideram que lhes é de direito. O passo seguinte foi o Relatório de Identificação e Delimitação (RTID), por meio do qual foi delimitado o território quilombola por meio de um estudo feito pelo INCRA em parceria com especialistas da UFRGS. Eles definiram uma área total de 4,6 mil hectares, que fica nos municípios de Osório e Maquiné, para 456 famílias quilombolas – 193 delas já vivem lá.

Negociação só é possível depois da notificação, defende socióloga

“Estamos pedindo apenas que se cumpra o procedimento legal”, afirma Ieda Ramos, socióloga que trabalha com a comunidade quilombola de Morro Alto. Ela defende que o espaço para contestações deve ser dado justamente após a notificação e não antes dela. Além disto, defende que uma negociação entre quilombolas e pequenos agricultores só pode ser feita depois que o INCRA entrar na área e identificar quem é pequeno agricultor e depende das terras para sua sobrevivência.

Há no território chácaras de turismo e lazer, cujos proprietários muitas vezes não habitam o local, além de pedreiras e grandes propriedades. “Quando o INCRA fizer a notificação é que ele vai ver quem tem escrituras válidas, ou terras compradas de boa-fé. Vai poder ver quem é pequeno agricultor e quem é laranja para ocultar grandes propriedades. Esse é o levantamento que não querem que o INCRA faça”, afirma a socióloga.

No século XIX, a área reivindicada como quilombo pertenceu a Rosa Osório Marques. Viúva e sem filhos, a proprietária deixou em testamento uma propriedade de 47 mil hectares para 24 ex-escravos, alforriados. Os familiares de Rosa deixaram apenas pequena parte desta área para os negros, cujos descendentes agora reivindicam cerca de 10% da área total que fora de Rosa Osório Marques. Ao longo de mais de um século, as terras foram sendo negociadas pela família de Rosa ou ocupadas. Hoje, a área já possui pelo menos 450 famílias de pequenos agricultores não quilombolas, muitos deles com escrituras de posse da terra.

“Sair está fora de cogitação”, diz agricultor

“Eu acho temerário o INCRA vir notificar. A gente teme que possa acirrar as animosidades”, diz Edson Souza, secretário-geral da Associação da Comunidade de Aguapés, uma das pequenas comunidades que está, em parte, dentro do território identificado como quilombola. Souza afirma que sempre houve um convívio harmônico entre brancos e negros na região, o que já não ocorre mais. “Estão tratando a gente com racismo. O presidente deles (Wilson Marques da Rosa) disse que não queria nenhum branco em cima das terras deles e nos acusou de ter expulsado os negros”, acusa.

Souza diz que teriam tentando conversar com os quilombolas, mas eles não quiseram negociar. E diz que em uma deliberação recente os agricultores familiares decidiram que não irão negociar e nem aceitarão a desapropriação das terras em que vivem. “Tirar pessoas que vivem da terra e jogar ao relento. Não se aceita mais discutir valor, não vamos sair. Não se reconhece o que este pessoal da UFRGS e os militantes montaram. Está fora de cogitação”, diz.

O agricultor afirma que há pessoas que têm escrituras datadas de até 130 anos, adquiridas de família de Rosa Osório Marques, e que a maioria deles possui título da terra ou pode provar que foram compradas de boa-fé. Ele conta que parte das terras foi utilizada para o plantio de cana de açúcar no passado e que foram recuperadas pelos agricultores, que hoje plantam essencialmente hortaliças como alface, espinafre e rúcula, além de banana.

Edson Souza acredita que os investimentos feitos para tornar a terra produtiva, os açudes, as cercas, galpões, entre outras coisas construídas pelos agricultores não seriam contempladas em indenizações. “O INCRA estimou em R$ 32 milhões toda a área. Daria R$ 7 mil por hectare, mas e o investimento na terra para ficar produtiva, o galpão, o açude, as cercas? Tem uma área de Turismo que investiu R$ 20 milhões, já dá para imaginar o prejuízo”, diz. Além de reconhecer que há propriedades de turismo, Souza diz que há propriedades maiores, de cerca de 100 hectares, na área, mas explica que estas terras estão misturadas com as pequenas, não havendo, portanto, como fazer uma divisão contínua de terras quilombolas e não-quilombolas.

Conflito expõe visões divergentes

O caso não é pontual. Prova disto é que agricultores do Litoral Norte e de Rio Pardo, na região central do RS, que vivem situação semelhante, estão trabalhando conjuntamente. Divergências entre o setor agrário e governo devido à demarcação de terras quilombolas datam de 2003, quando o então presidente Lula estabeleceu, por meio do Decreto 4.887, os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Desde então, disseminou-se a ideia de que as terras seriam tituladas aos quilombolas por mero auto-reconhecimento, ou por decisões arbitrárias feitas pelo governo com auxílio de acadêmicos. Muita reclamação também sobre o volume de terras quilombolas, que o setor agropecuário considera alto demais.

“Essa visão é preconceituosa, de gente que não conhece as comunidades quilombolas”, afirma Alexandre Reis, diretor do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Cultural Palmares, entidade ligada ao Ministério da Cultura e responsável pelo início do processo de reconhecimento de áreas quilombolas. Reis afirma que há no Brasil 11 mil famílias quilombolas, assentadas em 900 mil hectares, em média 80 hectares por família. “Os latifúndios que temos no país são muito maiores que isto”, diz.

Reis explica que a auto-atribuição das comunidades quilombolas é só o primeiro passo. Depois, é necessário ter provas documentais. Em seguida, para o INCRA definir a área a ser titulada à comunidade o trabalho é feito por antropólogos, historiadores, economistas e agrimensores. Os critérios levam em conta o espaço histórico-social ocupado pelos quilombolas e os recursos naturais que utilizaram para sobrevivência. Depois de feita a notificação aos moradores não quilombolas da área, há 90 dias para contestar a demarcação administrativamente. O valor da indenização também pode ser questionado, tanto no INCRA, quanto na Justiça. “Há um espaço democrático. É um procedimento em que todos os envolvidos podem participar”, defende Reis.

O deputado federal Alceu Moreira (PMDB-RS) afirma que há um “fundamentalismo ideológico” em curso no país, que acaba criando conflitos entre agricultores e quilombolas. O deputado é um dos organizadores de uma audiência pública que será realizada na Assembleia Legislativa na próxima sexta-feira (21) para discutir a questão de Morro Alto.

Moreira acredita que a demarcação de terras quilombolas se rege por critérios arbitrários. “Vai um antropólogo que ninguém conhece, que não é de lá e define tudo”, diz. O parlamentar defende que os quilombolas é que devem ser indenizados, e que os agricultores devem continuar trabalhando com a terra. “Não seria melhor chamar os descendentes de quilombolas para indenizá-los do que expulsar as famílias de agricultores? Muitos quilombolas já moram na Região Metropolitana e poderiam ser indenizadas para pagar os estudos dos filhos, comprar imóveis, por exemplo. Do jeito que está vamos expulsar pequenos agricultores e botar pessoas que já não trabalham mais com a terra, que não são de lá”, argumenta.

Tanto o deputado, quanto o líder comunitário de Aguapés defendem também a indenização aos quilombolas sob o argumento de que é o Estado quem deve fazer justiça com os quilombolas e não os agricultores. Para Edson Souza, o Decreto 4.887, “rasga a Constituição”, ao negar o direito à propriedade para agricultores que possuem a posse da terra. Ele defende que se dê título às terras dos negros que vivem no local e que, por ventura, não tenham escritura. Não vê legitimidade para quem não vive mais na área.

“Não trabalham com agricultura justamente porque foram expulsos. Importante que o deputado visitasse as famílias e soubesse por que elas não trabalham mais com agricultura”, afirma a socióloga Ieda Ramos. “Os que permanecem estão em áreas de beira de morro, próximos a chácaras de lazer e pedreiras. A cerca do vizinho anda meio palmo a cada dia. Os quilombolas conseguem apenas plantar para sua alimentação, não há como plantar excedentes. A retomada das terras possibilitará que voltem a fazer a mesma atividade que era feita por seus ancestrais”.

Via: Sul 21

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